“No ano passado, 21 por cento da área ardida dos países do sul da Europa
correspondeu ao nosso país”
Dr.ª Cecília Longo, pneumologista e presidente da Associação Chama Saúde
O nosso país continua infelizmente a registar dezenas de
incêndios. Continuam a morrer bombeiros em combate aos fogos, somam-se
hectares de floresta ardida e a perda de bens materiais e de animais.
Para além dos efeitos nefastos do fogo no “pulmão” de Portugal,
bombeiros e populações estão expostos a um risco pouco avaliado. E de
que forma devem proteger-se estes heróis que arriscam a vida por todos
nós? O que está a ser feito em Portugal e o que ainda pode ser promovido
para mudar este cenário devastador? Cecília Longo, pneumologista e
presidente da Associação Chama Saúde, ajuda-nos a reflectir sobre este
tema.
Quais os principais riscos que os bombeiros correm ao nível da saúde respiratória?
Para além das consequências visíveis dos fogos,
devemos estar atentos aos efeitos silenciosos que os incêndios têm na
saúde dos bombeiros. As lesões que podem surgir são causadas pela
inalação de fumo. Quando vão combater incêndios, sejam eles florestais
ou urbanos, todos os bombeiros são submetidos à inalação de partículas
que têm efeitos diferentes e variáveis mas que diminuem a função
respiratória. Isto significa que os bombeiros deixam de respirar bem e
esta é uma característica inerente a todos eles. A alteração da
qualidade que vai haver do ar que respiram vai prejudicar todo o pessoal
que combate os incêndios, as pessoas que ajudam e mesmo os próprios
jornalistas que fazem reportagem no local. Se for um fogo florestal,
existe muito monóxido de carbono, níveis de ozono alterados, radicais de
oxigénio muito reactivos que podem levar à lesão das pequenas vias
aéreas.
Sempre que os bombeiros estão muitas horas seguidas a
combater incêndios estão a diminuir a sua função respiratória - que vai
demorar algum tempo a repor. Os efeitos da exposição aguda podem ser
evitados de alguma maneira através da utilização de equipamentos de
protecção respiratória e da diminuição da duração dos turnos no teatro
de operações de combate aos incêndios. Para além disso, devemos
considerar que a magnitude dos efeitos respiratórios depende também de
alguns factores individuais, como é o caso da idade, ou da existência
prévia de patologias cardíacas ou respiratórias, entre outros. O facto
de irem várias vezes enfrentar os fogos provoca episódios repetidos de
problemas agudos do pulmão e que a longo prazo vão provocar uma
obstrução permanente ao nível dos pulmões, o que chamamos doença
pulmonar obstrutiva crónica (DPOC).
É fundamental para os bombeiros avaliarem a sua
função respiratória, para deste modo se poder detectar, monitorizar e
tratar as situações patológicas que forem encontradas. O que se defende é
que o controlo da condição respiratória dos bombeiros seja uma prática
corrente. Os americanos, ao fim de algumas horas de trabalho no palco de
um incêndio, monitorizam a sua condição pulmonar. Em Portugal, temos
bombeiros a combater incêndios entre 24 a 48 horas sem qualquer
avaliação. É isso que tendencialmente temos de corrigir.
O pode ser feito para proteger estes bombeiros?
A Associação Chama Saúde tem desde há anos chamado a
atenção para a necessidade de uma vigilância sistemática da saúde dos
bombeiros. Temos monitorizado a condição física dos bombeiros e alertado
para a importância de vigiar a sua saúde -nomeadamente respiratória -,
pelo menos, uma vez por ano. Sabe-se que a exposição prolongada aos
fumos dos fogos pode causar, por exemplo, uma DPOC precoce nos soldados
da paz. Zelar pela saúde dos bombeiros é uma responsabilidade nacional e
dotá-los de um sistema de saúde que detecte precocemente as alterações é
o modo correcto de actuar.
A nível individual cada bombeiro tem também um papel
preponderante na manutenção da sua saúde através da adopção de estilos
de vida saudáveis nomeadamente com uma alimentação saudável, controlo do
peso, ausência de tabaco e a prática de exercício físico.
A informação é fundamental. Os bombeiros devem saber
dos riscos que correm e é preciso criar condições para que possam ser
monitorizados. Cito apenas alguns exemplos práticos. Quando estão no
combate aos incêndios, cada um dos materiais que usam é pesado, pelo que
é necessário que tenham um treino físico prévio para não estarem
submetidos a um esforço sobre-humano. O monóxido de carbono, após muito
tempo a combater incêndios e sem a devida monitorização, pode fazer com
que os bombeiros fiquem intoxicados. Este tipo de intoxicações é muito
frequente em bombeiros e é necessário tentar evitar esta situação,
dotando-os de material, como por exemplo, um monitor portátil para a
farda de medição dos níveis de monóxido de carbono.
A Associação Chama Saúde desde há anos chama a atenção para o uso de equipamento individual de protecção.
Na realidade, tem sido feito um investimento em
equipamento individual de protecção a nível nacional mas o que é certo é
que todos os anos têm havido perdas humanas, o que nos deve levar a
reflectir e analisar caso a caso as circunstâncias das fatalidades e a
implementar medidas futuras para as evitar.
E os números são de facto alarmantes…
Nos últimos 20 anos, segundo o último relatório do
Forest Fires, já arderam 3 milhões 575 mil hectares de floresta e mato
só em Portugal. Parte das coisas que se pode fazer em relação à saúde
dos bombeiros tem a ver com a prevenção dos próprios fogos. Sabemos que
os nossos fogos acontecem na fase Charlie – Julho, Agosto e Setembro –
mas é no Inverno que verdadeiramente se “combatem” os fogos através da
prevenção. É uma área técnica que cabe à Protecção Civil e será nessa
fase que preconizamos uma intervenção médica que monitorize os bombeiros
e avalie aqueles que estão capazes de combater o fogo no Verão seguinte
e os que não estão. Os fogos não se combatem só de mangueira. Há muito
trabalho a fazer na ante câmara do fogo e os que tiverem menos
qualificações físicas podem fazer esse trabalho. Os incêndios têm riscos
a longo prazo, como por exemplo, o aparecimento de doenças oncológicas e
de surgimento mais precoce de doença respiratória, como a asma, com
diminuição da esperança média de vida dos bombeiros. Este já é um
autêntico problema de saúde pública.
De que forma é que os incêndios contribuem para as alterações climáticas?
Qualquer incêndio vai provocar uma poluição
atmosférica e neste momento estão descritas rotas de poluição, tanto a
nível local, como a nível mundial. A poluição atmosférica oriunda dos
fogos é um problema mundial do planeta e não apenas local decorrente dos
fogos que existem em Portugal.
Os fogos do Canadá contribuíram para 18% das emissões
poluentes totais do país. Nas previsões das alterações climáticas,
Portugal tem previsto um acréscimo de incêndios pelo aumento da
temperatura e pela variabilidade climática que temos assistido, o que
torna mais uma vez a prevenção como a grande arma para vencer este
panorama. Não é só a saúde e a vida humana que estão em risco mas é
também a vida animal, a biodiversidade e a floresta que é essencial a
todos nós. Se não tivermos floresta, a saúde respiratória das pessoas
vai alterar-se muito.
Quais as medidas preventivas existentes em Portugal?
Considero que Portugal tem de continuar a investir em
formação e em informação. É fundamental que Portugal o faça sobretudo
devido às perdas de vidas humanas e de perdas monetárias graves
decorrentes destes incêndios. Há perdas de bens e de animais, de
biodiversidade muito difíceis de repor. Todo o investimento tem de ser
feito em prevenção e monitorização. Portugal tem feito um esforço real,
as autoridades têm tentado implementar determinados planos e verificado a
melhor maneira de actuar. Como queremos que os homens que vão voltem,
seria bom seguirmos os programas para a própria saúde dos bombeiros como
os que são realizados nos Estados Unidos da América e noutros países.
Há 16 iniciativas americanas que estão relacionadas com a segurança de
vida e que integram a monitorização de saúde, o suporte psicológico, o
treino físico e a mudança de comportamentos. Depois, existem também
iniciativas ligadas à própria estrutura em si.
Por outro lado, as fatalidades têm de servir como lições do que não se deve fazer e como mudar aquilo que aconteceu.
Quais os grandes objectivos da Associação Chama Saúde?
Esta associação tem como objectivo estudar a saúde
dos bombeiros e desenvolver procedimentos e normas de actuação. Todas as
monitorizações têm sido feitas por enfermeiros, técnicos, médicos e
pessoal de saúde que se têm voluntariado de Norte a Sul do país e também
nas ilhas porque já fizemos este trabalho na Madeira para contribuir
para o estudo e a avaliação dos homens e mulheres que combatem os
incêndios. É fundamental que a Associação chame à atenção para a
problemática da Saúde Pública e da própria saúde profissional dos nossos
bombeiros voluntários que têm de ser protegidos nomeadamente através do
conhecimento dos problemas de base que podem ter e na inversão de
determinados factores de risco. A chamada de atenção e o suporte que a
Associação poderá dar vai depender sempre de apoios daí que seja
fundamental criar a nível nacional toda uma estrutura que permita que a
vigilância dos nossos bombeiros voluntários esteja sempre assegurada.
Para isso, é fundamental ter o apoio governamental e outros. É por isso
que todos os apoios são bem-vindos, tanto de voluntariado como ao nível
de apoios monetários.
Temos feito avaliações cardíacas, respiratórias e
psicológicas e sempre que encontramos alterações, as pessoas são
reencaminhadas para o respectivo serviço com cópias dos exames
efectuados. Há um trabalho de base que tem sido feito mas que é preciso
aumentar para que seja possível atingir toda a população de bombeiros do
nosso país. A vigilância da saúde dos bombeiros está consignada por lei
há mais de 20 anos mas nunca foi posta em prática. Muitas vezes, os
nossos bombeiros não estão protegidos do ponto de vista físico porque a
sua saúde não está sequer monitorizada.
Alguns dados a reter:
Em Portugal há 40.000 bombeiros expostos a fumo sem vigilância sistemática;
A exposição a níveis elevados de partículas
inaladas durante os incêndios condiciona alterações na função
respiratória e cardiovascular.
A poluição atmosférica altera as defesas do pulmão e facilita o aparecimento de doenças pulmonares.
A exposição ao fumo origina uma diminuição dos
valores da função respiratória conduzindo a obstrução predominante nas
pequenas vias aéreas.
O efeito repetitivo do fogo origina inflamação brônquios.
Qual a missão da Associação Chama Saúde?
Melhorar o sistema de informação relativo ao impacto das doenças decorrentes da actividade de bombeiro.
Lançar as bases para uma rede nacional de prevenção de riscos ocupacionais.
Criar as infra estruturas que permitam implementar o programa de promoção da saúde.
Potenciar a avaliação desta actividade como profissão de risco.
Promover um plano nacional de monitorização e vigilância da saúde dos bombeiros.
Implementar medidas práticas segundo as
recomendações internacionais seguindo o princípio de que a protecção da
saúde/vida dos bombeiros tem de ser também uma preocupação constante do
estado e de quem comanda.
Qual a estratégia?
Estudar as patologias decorrentes desta actividade.
Seguir e avaliar a condição física dos bombeiros.
Seleccionar grupos de treino específicos para determinadas funções.
Aplicar os resultados obtidos à prática diária.
Como ?
Através de rastreios de função respiratória e condição cardiovascular periódicas.
O que é a Associação CHAMA SAÚDE?
A associação resultou de um movimento cívico, de
cidadãos maioritariamente médicos, e visa a promoção da saúde dos
bombeiros portugueses e demais agentes de serviço público, mediante o
estudo e investigação científica e tecnológica, colecta e divulgação de
informação, organização de cursos de formação, assistência e prestação
de cuidados e monitorização de saúde.
Texto: Cláudia Pinto,
jornalista